terça-feira, 14 de julho de 2009

É DE MESTRE ORA EÇA


Imagem retirada daqui
"Dâmaso cambaleou para trás, desvairado:
— Qual bater-me! Ee sou lá homem que me bata! Eu cá é a soco. Que venha para cá, não tenho medo d'ele, arrombo-o...
Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados e em riste. E queria Carlos ali para o escavacar! Não lhe faltava mais senão bater-se... E então duelos em Portugal, que acabavam sempre por troça!
Ega no entanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoara a sobrecasaca e recolhia os papéis espalhados sobre a Bíblia. Depois, serenamente, fez a última declaração de que fora incumbido. Como o sr. Dâmaso Salcede recusava retratar-se e rejeitara também uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse d'aí por diante, fosse uma rua, fosse um teatro, lhe escarraria na face...
— Escarrar-me! berrou o outro, lívido, recuando, como se o escarro já viesse no ar.
E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre o Ega, agarrando-lhe as mãos, n'uma agonia:
— Ó João, ó João, tu, que és meu amigo, por quem és, livra-me d'esta entaladela!
Ega foi generoso. Desprendeu-se d'ele, empurrou-o brandamente para a poltrona, calmando-o com palmadinhas fraternais pelo ombro. E declarou que, desde que Dâmaso appelava para a sua amizade, desaparecia o enviado de Carlos necessariamente exigente, ficava só o camarada, como no tempo dos Cohens e da villa Balzac. Queria pois o amigo Dâmaso um conselho? Era assinar uma carta afirmando que tudo o que fizera publicar na Corneta sobre o sr. Carlos da Maia e certa senhora fora invenção falsa e gratuita. Só isto o salvava. D'outro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe na cara. E, dado esse desastre, Damasosinho, a não querer ser apontado em Lisboa como um incomparável cobarde, tinha de se bater à espada ou à pistola...
— Ora, em qualquer d'esses casos, você era um homem morto.
O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de veludo, com a face emparvecida para o Ega. Alargou molemente os braços, murmurou da profundidade do seu terror:
— Pois sim, eu assino, João, eu assino...
— É o que lhe convém... Arranje então papel. Você está perturbado, eu mesmo redijo.
Damaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago por sobre os móveis:
— Papel de carta? É para carta?
— Sim, está claro, uma carta ao Carlos!
Os passos do desgraçado perderam-se enfim no corredor, pesados e sucumbidos.
— Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arripio, a mão aos sapatos.
Ega lançou-lhe um chut severo. Dâmaso voltava com o seu sumptuoso papel de monograma e coroa. Para envolver em silêncio e segredo aquele transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de veludo, desdobrando-se, mostrou o brazão de Salcede, onde havia um leão, uma torre, um braço armado, e por baixo, a letras d'ouro, a sua formidável divisa: SOU FORTE! Imediatamente Ega afastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do Dâmaso..."
Eça de Queirós, Os Maias
A que propósito vem isto?
1º Porque nunca é demais reler Eça!
2º A propósito DISTO
QUAL DÂMASO SALCEDE, ESBARRONDADO E EMPARVECIDO, A SINISTRA PROMOVE-SE, "EU SOU FORTE", MAS O ESCARRO JÁ VAI NO AR...

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