Imagem Fernando Monteiro
"As Bodas de Canaan"
«Portugal reúne todas as condições para ser o study-case da política europeia que os nossos dirigentes, de vez em quando, sugerem que já é. Estamos muito mais endividados do que aquilo que ganhamos (é o que diz a nossa dívida externa) e não estamos a pagar as prestações do que devemos (é o que diz o défice).
Somos o parente pobre daquelas famílias ricas que às vezes é divertido, conta anedotas e diz "porreiro, pá" em festas onde se bebe muito, mas é incómodo porque não quer trabalhar. "O tio deu-lhe um bom emprego e ele continua a gastar tudo em mulheres e agora foi comprar um carro descapotável".
A continuar assim, Portugal poderá ser protagonista da resposta a uma pergunta histórica: será que a União Europeia deixará falir um país membro pelo acumular de erros de gestão, ou o "nacionalizará" como fazem aos bancos que, por ganância, incompetência e pilhança caem no vermelho? Se nos deixarem falir ficamos como o Kosovo. Um antro de oportunistas, traficantes e vigaristas tolerados na vizinhança por correcção política, a cujos filhos se dá um eurito de vez em quando com um "portem-se bem", mas onde queremos a Polícia de choque a manter as coisas longe de nós. Se nos nacionalizarem, a condição para a solvência é mandar para cá gestores profissionais que, tal como a força de paz do Kosovo, dialogam pouco.
Apenas dizem aos locais quais as ruas onde se pode transitar em sentido único, nos dois sentidos ou onde o trânsito está interdito. Depois, esses gestores vão transformar a nossa banca privada em balcões de um banco público pan-europeu de capitais mistos com sede regional na Culturgest, que reporta directamente a Berlim, Londres e Paris.
Vamos deixar de nos preocupar com coisas como o Orçamento de Estado, essa obra literária anual cujo estilo ainda não se conseguiu definir em três décadas de democracia porque hesita de ano para ano entre o absurdo e a ficção. Este ano, os dois géneros ombreiam em íntimo concubinato. Na área do absurdo, ressalta a proposta de transformar o crédito imobiliário malparado em sisudas parcelas de arrendamento que os devedores passariam a honrar com a religiosidade que já não temos. A proposta é tão mais absurda quanto diz que só é candidato a este milagre quem não tiver "mais de três meses" de incumprimento na prestação. Ou seja, o que o Orçamento de Estado para 2009 diz é o seguinte: Não pague durante três meses a prestação da casa porque o Estado socialista toma conta da sua dívida e vai poder continuar a saldá-la em suaves prestações de cerca de metade daquilo que hoje o esmaga e não o deixa dar largas à sua expressão pessoal tão bem traduzida em plasmas, playstations, telemóveis e tunning de automóveis baratos. E a casa continua sua. E ninguém diz para onde vai o resto da dívida nem quem é que a vai pagar.
Na área da ficção, o Orçamento prevê crescimentos para além de tudo o que já crescemos e diminuições de défices para aquém de tudo o que já descemos. E tudo isto no ambiente da maior crise financeira da historia da humanidade em que o dólar vale menos do que o bíblico shekel, que serviu de moeda de troca às tribos judaicas durante o êxodo. E é esta gente republicana e laica. Tanta fé no futuro não se via desde as bodas de Canaan.»
Somos o parente pobre daquelas famílias ricas que às vezes é divertido, conta anedotas e diz "porreiro, pá" em festas onde se bebe muito, mas é incómodo porque não quer trabalhar. "O tio deu-lhe um bom emprego e ele continua a gastar tudo em mulheres e agora foi comprar um carro descapotável".
A continuar assim, Portugal poderá ser protagonista da resposta a uma pergunta histórica: será que a União Europeia deixará falir um país membro pelo acumular de erros de gestão, ou o "nacionalizará" como fazem aos bancos que, por ganância, incompetência e pilhança caem no vermelho? Se nos deixarem falir ficamos como o Kosovo. Um antro de oportunistas, traficantes e vigaristas tolerados na vizinhança por correcção política, a cujos filhos se dá um eurito de vez em quando com um "portem-se bem", mas onde queremos a Polícia de choque a manter as coisas longe de nós. Se nos nacionalizarem, a condição para a solvência é mandar para cá gestores profissionais que, tal como a força de paz do Kosovo, dialogam pouco.
Apenas dizem aos locais quais as ruas onde se pode transitar em sentido único, nos dois sentidos ou onde o trânsito está interdito. Depois, esses gestores vão transformar a nossa banca privada em balcões de um banco público pan-europeu de capitais mistos com sede regional na Culturgest, que reporta directamente a Berlim, Londres e Paris.
Vamos deixar de nos preocupar com coisas como o Orçamento de Estado, essa obra literária anual cujo estilo ainda não se conseguiu definir em três décadas de democracia porque hesita de ano para ano entre o absurdo e a ficção. Este ano, os dois géneros ombreiam em íntimo concubinato. Na área do absurdo, ressalta a proposta de transformar o crédito imobiliário malparado em sisudas parcelas de arrendamento que os devedores passariam a honrar com a religiosidade que já não temos. A proposta é tão mais absurda quanto diz que só é candidato a este milagre quem não tiver "mais de três meses" de incumprimento na prestação. Ou seja, o que o Orçamento de Estado para 2009 diz é o seguinte: Não pague durante três meses a prestação da casa porque o Estado socialista toma conta da sua dívida e vai poder continuar a saldá-la em suaves prestações de cerca de metade daquilo que hoje o esmaga e não o deixa dar largas à sua expressão pessoal tão bem traduzida em plasmas, playstations, telemóveis e tunning de automóveis baratos. E a casa continua sua. E ninguém diz para onde vai o resto da dívida nem quem é que a vai pagar.
Na área da ficção, o Orçamento prevê crescimentos para além de tudo o que já crescemos e diminuições de défices para aquém de tudo o que já descemos. E tudo isto no ambiente da maior crise financeira da historia da humanidade em que o dólar vale menos do que o bíblico shekel, que serviu de moeda de troca às tribos judaicas durante o êxodo. E é esta gente republicana e laica. Tanta fé no futuro não se via desde as bodas de Canaan.»
Texto de Mário Crespo no JN ONLINE
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